Latifúndios são pedacinhos de chão

Meu Pedacinho de Chão


Existe uma faculdade humana fundamental que é a capacidade de pensar por imagens. Elas nos chegam por formatos e cores diversas o tempo todo, enquanto estamos acordados ou sonhando. Entretanto, em alguns esse exercício parece ocorrer de uma forma especial. É o caso do artista Raimundo Rodriguez, que faz parte desse seleto grupo e seu mundo é povoado de memórias a partir de objetos recolhidos dos resíduos do mundo. Esses objetos e restos descartados no cotidiano das pessoas, em suas mãos ganham vida para reconstruir um novo sentido das coisas, uma nova fábula. E pra que serve uma fábula? Serve para analisar a alma e a natureza do ser humano e, dessa forma, Rodriguez nos presenteia a cada novo trabalho com algo que se assemelha a uma porta de entrada para os sonhos. Cada objeto em suas mãos ganha novo significado e se insere numa nova narrativa que desnuda a alma, faz pensar, atormenta em alguns casos e encanta em outros, criando beleza onde nada existe e propondo um constante exercício de deslocamento na memória. Nele, não nos recordamos de algo que ficou guardado , de algo que se partiu, pelo contrário, criamos nós mesmos as associações, as metáforas e as histórias. São nossas memórias inventadas que vêm à superfície e nos insere no contexto, na fantasia, no mundo refeito de aparas intermináveis de papeis, latas, ferragens retorcidas, caixas, madeiras e tudo mais que foi deixado pelo caminho do consumo.

“Me interessam muito os objetos de força bruta para sacralizá-los: um carrinho de mão, uma ferramenta, um manequim de moda que transformo em anjo. Quero, como disse Walmir Ayala, harmonizar objetos conflitantes.”, são palavras dele. A capacidade de dar vida às coisas sem sentido e estabelecer narrativas, parece simples operação de rearranjo de símbolos, mas pelas mãos de Rodriguez, o ato criativo é transbordante e poético. Sua obra já foi objeto de Tese Acadêmica e ele reúne em torno de si um grupo de parceiros artistas, escritores e pensadores que vêm trabalhando, nos últimos 30 anos, com um conceito em comum que alia ética e estética na arte.

No momento presente, sua obra ganha contornos de superprodução pela mente não menos talentosa, de Luiz Fernando Carvalho, responsável por produções impecáveis como "Capitu", "A Pedra do Reino", "Hoje é dia de Maria", "Alexandre e Outros Heróis", dentre outros primorosos trabalhos no veículo mais popular do mundo, a TV, e tendo na maioria delas, Raimundo Rodriguez na direção de arte. Nessa mesma TV, onde nunca se esperou mais do que entretenimento com conteúdos que sofrem pressões da sua indústria, Carvalho inova propondo adaptações do que existe de melhor em nossa cultura, buscando referências e comprovando que a produção em nível elevado artisticamente, não compromete a ação para as massas, ao contrário, eleva a linguagem televisiva. Carvalho propõe, basicamente, abordar o mundo a partir da arte porque entende que arte e vida podem andar juntos por se inscreverem na mesma categoria.

A simbiose dos talentos de Carvalho e Rodriguez brinda o grande público com um primor chamado “ Meu Pedacinho de Chão”, uma fábula que tanto pode fazer com que nos sintamos diante de um quadro de Marc Chagall, tamanho é o sonho colorido, como parecer que estamos sendo conduzidos por uma passagem de “Sonhos” de Akira Kurosawa, caminhando pelos campos de trigo dos quadros de Van Gogh e seus personagens maravilhosamente estranhos, dialogando com a subjetividade e a sensibilidade do Neoconcretismo ou, simplesmente, que estamos diante de “Latifúndios”, a grande e interminável série de Rodriguez – telas recortadas de lata e tinta arranhada que vai compondo poemas para serem decifrados e recontados.

De “Latifúndios”, Raimundo Rodriguez fez pedacinhos de chão remendados onde nasceu uma cidade inteira, como se estivesse lendo Italo Calvino a construir uma de suas cidades invisíveis na memória e , com enorme extensão de matéria orgânica da alma, a terra prometida da fantasia surgiu diante de nossos olhos. Como lavradores sentimos ânsia de invasão, queremos explorar todos os cantos e nele construir nosso jardim e nosso estar no mundo. São nossos sonhos reais e imaginários fundindo-se, confundindo e transformando-se em novos latifúndios.

Eis o que ocorre diariamente na tela virtual, potencializamos nossa vontade de decifrar mistérios, de aprender com a fábula, de acordar com o sonho sendo realizado. Fantasiar. Trabalho imenso, como um latifúndio essencialmente humano.



Marcia Zoé Ramos
Rio, 05/2014

artista plástica, arte educadora, historiadora de arte, produtora e gestora de projetos de arte e cultura. Mineira, vive e trabalha no Rio de Janeiro desde 2007