Papelaria Tem Tudo: O papel dos afetos ou os afetos em papel

#Papelariatemtudo


Quando Braque e Picasso ainda em 1912 aprofundavam as suas experiências cubistas a partir da colagem/assemblage, incorporando em suas obras tiras de jornal, papeis de parede e até mesmo objetos ordinários como maços de cigarro, retalhos de tecidos variados, entre outros, o campo das artes plásticas passava por uma verdadeira revolução, onde a presença ostensiva do mundo material se tornaria irreversível e pregnante.

Salto quântico na questão formal, e é preciso lembrar que devemos amar a forma pelo que ela é, ou melhor dizendo, como ela se apresenta.

A colagem ou o “Cubismo de colagem”, como “novo” recurso técnico, ponta de lança de novas conquistas, que invadiu o campo pictórico, ainda se apresentava, diante das aspirações modernistas, como síntese. Esta síntese que se quer incisivamente formal foi compreendida como um impulso teórico, como uma reflexão profunda, sequencia “natural” dos experimentos analíticos com a cor, a distorção e a planificação, e por fim, como uma pesquisa autocentrada.

Pouco mais de cem anos depois, a colagem ou assemblage se afirma como um recurso vivo na arte contemporânea, angariando inúmeros sentidos, em boa parte, distanciando-se de seu cerne racionalista, de sua contraparte modernista.

Uma mostra desta particularidade dos sentidos pode ser vista na exposição intitulada “Papelaria Tem Tudo”, do artista plástico Raimundo Rodriguez, através de um conjunto de obras em papel que são fruto direto de uma compilação de trabalhos que se iniciaram em 2007, e que se encontra em andamento o denominado work in progress.

A experiência de manipular a vasta família dos papéis é sugerida de início pelo título da exposição. A ideia de uma papelaria que “tem tudo”, e, tudo inclui toda sorte de material artístico, está para o amante das artes assim como a livraria está para o amante das letras.

Neste caso, um elo fortíssimo une os dois sensíveis amantes: o papel.

Papel kraft, papelão, papel alumínio, papel celofane, papel canson, papel de carta, papel ofício, papel mata-borrão, papel couchê, papel mate (fosco ou brilhante), papel duplex, papel artesanal, tríplex, entre tantos outros, cada um com sua própria poética, cada um com sua própria memória, ainda que em branco.

O papel, suporte máximo das letras, também é o das cores e dos desenhos e, em última instancia, das pinturas – antes da pintura, aprioristicamente, ele é a tentativa (em papel jornal, preferencialmente), é o ensaio que chamamos de croquí.

As imagens oníricas de tempos que se atravessam em platôs múltiplos são aglutinadas nos papéis da papelaria imaginária de Rodriguez por meio da assemblage.

Colagens de fragmentos vivos encontrados em selos de cartas, fotografias, ingressos usados, folhas secas, páginas rasgadas, panfletos descartados, marcadores de livros, etc. que se assentam harmonicamente sobre uma superfície adesiva constituindo as obras na tensão permanente entre o figurativo, o abstrato e o gesto/conceito.

É preciso aderir à forma pelo que ela é. Adesão simpática ou pura e simples empatia que evocará da língua alemã, contextualizada por teóricos como Worringer, o termo “Einfühlung”. Trata-se de projeção sentimental.

É preciso ter empatia pelos papéis delicados que flutuam abaixo de finas camadas de verniz, cera, giz e tinta.

Esses fragmentos de memórias afetivas estão em busca de uma unidade. Tais imagens são quase como cartas íntimas ressignificadas por códigos que não podem ser nem definidos como meramente figurativos, nem como apenas abstratos. Tais códigos convertidos em poéticas precisam ser sentidos, constantemente revividos, “lidos” pelo avesso. E é nesse avesso de uma projeção sentimental que se poderá amar a forma somente pelo que ela é.


Renata Gesomino.

Crítica de arte e curadora independente. Doutoranda pelo PPGAV-UFRJ. Professora de História da arte pela EBA-UFRJ e pelo Instituto de artes – UERJ.