Rastros do tempo - O embaraço das linhas da memória

Como quem desenha uma linha. Reta, outra não tão reta. Sinuosa. Como quem olha e encontra o embaraço dos fios. Como quem procura a si, tentando encontrar no anti-horário dos relógios a sua história. O tempo que volta para trás: -”Mas agora já são tantos os fios!”. E assim, como quem conta uma história. Como quem procura o fio da meada, acha na memória o novelo.

A contemporaneidade nos ensinou que o homem é sujeito constituído de pedaços e,  que fragmentado, caminha procurando incessantemente sua unidade. Nos ensina que, no máximo, ele consegue promover clarões, vislumbrar em poucos segundos a sua própria  existência.  Instante onde seus fragmentos  encontram uma ordem temporária, capaz de organizar o passado, dar um sentido pro presente e predizer o futuro...

O artista contemporâneo, em muitos dos seus movimentos, faz isso. Coleta rastros, guarda nas gavetas pedaços de papel, linhas, folhas, roupas velhas. Nos cantos de suas casas residem sem aluguel, pedaços de madeira, latas de tintas sem tinta, o resto da utilidade. Perenes,  todos esses sinais aguardam o movimento da memória que nem sempre se reveste de história a ser contada. A ação é do tempo. É ele quem  ensina o  gesto a ser aplicado, que guarda as descobertas e que cultiva a cultura. Ele quem diz: -“ Arte!”. A memória é uma habilidade do Tempo e,  às vezes, ela  é ancestral, memória que permanece do mundo. Tipos, arquetipos, deuses. E, se ainda não o são, podem vir a ser.

O artista Raimundo Rodriguez é um coletor,  trabalha com matéria de memória, transforma  as suas, as do universo, as de outrem em objetos estéticos. Seus sinais são mutantes, uma coisa se transforma em outra. Seu trabalho é rastro do mundo. Diz sem contar sobre o tempo. E, se o tempo é qualidade, suas obras cativam porque coincidem sincronicamente com outras temporalidades.


Sabrina Travençolo
Cientista Social, artista plástica e integrante do Grupo Garrucha

A Orquestra do desejo

“O Jardim das Delícias - Reflexões sobre questões materiais e transitórias ou simplesmente uma obra em processo”


O que busca Raimundo pelos jardins de sua arte?

Ele diz: – “A própria busca”.

Assim começa essa história, que é corpo e caminha com cuidado, pé a pé sobre a perigosa e escorregadia linha da linguagem e que sabe, que num descuido as fronteira dos sentidos se dissolvem: o que é bom vira mau, o que é desejo também é desespero e o que a princípio é deleite, ao espelho se vê como delírio. Nada é, mas tudo é possível.

Nesse faz de conta dúvidas proliferam: Como afirmar virtudes se o mundo continua aqui fora? Como dizer “agora”, se o agora já é depois e depois ... e que eternamente o presente já é história? Como dizer de fato que ele está aqui ou que isto está ali, se seus nomes nos escapam? Nessa história das coisas sem nomes, vive-se sob a perspectiva dos índices e sinais; e é sobre estes rastros que o artista Raimundo Rodriguez cria “ O Jardim das Delícias - Reflexões sobre questões materiais e transitórias ou simplesmente uma obra em processo”.

Obra em processo, como diz o próprio título, nasceu no sopro antigo do Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch, e teve seu agora em 1994. Ela conta a história da busca do artista, não mais pelos nomes ou definições, já que tudo é transitório e escorregadio, mas pelas existências. Há assim, nas 24 peças que a compõe, toda sorte de materiais: ferramentas, crucifixos, pedaços de madeira, enfim coisas que se soltaram das engrenagens do mundo, que perderam suas identidades e se tornaram presenças anônimas inundadas de falas sobre si.

E se em Bosch, que é com quem dialoga em silêncio o trabalho de Raimundo Rodriguez, os desejos estão ditos sob o nome de pecado e os encontramos corporificados em homens, mulheres e monstros, todos em carne, em Raimundo já o encontramos sublimado. O desejo é um desejo de tudo, um “eu quero” sem saber ao certo o que se quer. Perdidas suas funções iniciais, esses objetos se tornaram peças de um algo maior, que cresce e que canta suave o desejo em si. No fim o ritmo é dado: o coro dos objetos se forma, e em uníssono marcam a forma como eles se espalham na superfície das placas.

Caminhando no tempo, o artista Raimundo Rodriguez segue assim na sua obra infinita. Na sua busca incessante, encontra sempre a arte como início de resposta. A única coisa que permanece constante no seu trabalho é o gesto criativo: a mão do artista que orquestra os desejos.

Sabrina Travençolo
Cientista Social, artista plástica integrante do Grupo Garrucha