Raimundo Rodriguez

Montagens . pinturas . objetos

   Os corredores estreitos quase labirintos, as pequenas câmaras com luz difusa, as avalanches de informações que caem sobre o expectador nesta montagem da exposição de Raimundo na Galeria do Sesc/Meriti. É um mergulho profundo no sítio arqueológico que cada ser humano traz em seu interior. O místico, o religioso, os arquétipos, tudo que possa estar enterrado como fóssil começa a desvelar-se a luz dos olhos que permitem os questionamentos.

Gino Fonseca
Curador da exposição

Raimundo Rodriguez , um artista educador



   Um artista talentoso que se interessa pelo rejeito, pelo material desprezado, pelas sobras: este é o princípio básico de seu trabalho. Seu desafio é sempre transformar algo que ninguém quer em objeto de desejo. Sua filosofia é tornar a dar vida ao que já está morto, é ressuscitá-lo, é proporcionar-lhe uma nova vida. No material totalmente desprezado é que ele percebe força e beleza. Para Raimundo, o objeto que porventura escolhe para levar a cabo sua missão, não muda, o que muda é a energia do mesmo. “Quando pego uma bacia velha, a bacia continua a mesma, mas ela vai se transformar num objeto que vai ser desejado. Me interessam muito os objetos de força bruta para sacralizá-los: um carrinho de mão, uma ferramenta, um manequim de moda que transformo em anjo. Quero, como disse Walmir Ayala, harmonizar objetos conflitantes.”
   O surrealista francês Marcel Duchamp colocou, em 1914, um objeto escolhido ao acaso sobre um pedestal, o qual ficou assim investido da dignidade solitária do destroço abandonado. Servindo a nada, disponível, pronto para tudo, vive. Essa exaltação mágica do objeto é a confirmação de que a arte moderna, conhecida como tal desde o início do século XX, se remete à tradição dos alquimistas que, durante a Idade Média, consideravam a matéria como a essência da terra, digna de contemplação religiosa A arte moderna e sua significação simbólica,ocupam por conseguinte, um lugar na história do espírito humano.
   O espírito da matéria, isto é, o espírito que se encontra dentro e por trás dos objetos inanimados, pode ser percebido por termos, dentro de nós, o mesmo mistério. Contactamo-nos com esses materiais, diretamente, através do que Jung chamou de inconsciente coletivo. Esta definição, como a conhecemos hoje e aquilo que em termos da física chamamos de matéria, era para os alquimistas a mesma coisa “desconhecida” , só que num dos casos observada de fora , e, no outro, de dentro. ”André Breton, o poeta francês, um dos mais importantes idealizadores do Surrealismo, no início do século XX, buscou a reconciliação dos contrários, o consciente e o inconsciente. Miró, Picasso, Braque, com suas colagens, feitas com todo o tipo de lixo e entulhos, e Paul Klee, traduziam o espírito dessa época em suas obras e compartilhavam a sensação de que o objeto significa “mais do que o olho pode perceber.” Cada artista, desde os mais remotos tempos, foi sempre o instrumento e o intérprete de sua época e, para esses artistas de vanguarda, que viviam a tragédia da I Guerra Mundial e suas conseqüências dramáticas e funestas para as populações atingidas, foi preciso romper, quebrar com os cânones da arte até então vigentes.
   Raimundo, perfeito continuador dessa maneira peculiar de viver a arte, não compra o material, usa o que vai encontrando largado, abandonado pelas ruas, pelos montes de lixo: sua “matéria-prima “ é o rejeito. Dentro do lixo só o interessa o que não interessa a mais ninguém. Não interfere logo na peça, deixa que ela se apresente. Não quer , porém, mostrar-se panfletário no aproveitamento desse material. Tem uma firme posição filosófica sobre o assunto: não se envolve em disputas com ninguém na obtenção do material, não usa da violência da disputa. Para ele, objetos, ressentimentos e pessoas rejeitadas não interessam, só se conseguir transformá-las. E diz que o que transforma é a arte, é sentimento. Se não mudar o coração, se não abrir o coração, se não der alegria, se não provocar um questionamento, não muda nada. Argumenta, com sabedoria, que com o acúmulo de informações, com os milhares de livros,de filmes, de revistas, de programas de televisão, nos tornamos mais superficiais pois não há tempo para aprofundamentos. Mas para o artista, lembra Kandinsky, a importância das grandes obras de arte não repousa na superfície mas na raiz das raízes: no conteúdo místico da arte. E ele afirma que o olho do artista deve estar sempre voltado para sua vida íntima e seu ouvido, sempre alerta à voz da necessidade interior. Paul Klee, por sua vez, diz que é preciso tornar visível tudo o que se percebe secretamente. A lamentar, filosofa Raimundo, o fato de que a maioria das pessoas só vê a superfície, quando o certo é ver com o coração. Ver dentro das coisas, com/ viver. Aprender essa atitude leva tempo, não é um dom, não é magia, é estudo, um treinamento, um hábito.
   Nascido no Ceará em 1963, filho de pai estucador e neto de carpinteiro, começou a pintar aos treze anos. Participou de ateliê no Rio, a Colméia dos Pintores do Brasil e participou, aos quinze anos do 1º Salão do Artista Jovem, no Planetário, no Rio. Durante alguns anos foi animador cultural da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Tem presença constante e de grande relevância no movimento cultural do município de Nova Iguaçu, onde mora. É fundador e participante ativo do Grupo Imaginário Periférico. Em sua comunidade pinta muros, participa das festas, recebe, com prazer, as doações dos conhecidos daquilo que não os interessa mais. Sai às ruas e vai cumprimentando e conversando com intimidade com os que encontra. Convive com a pobreza dos vizinhos e percebe que, apesar das muitas necessidades são pessoas criativas. Vê como muito importante conviver com sua comunidade, pois aí estão suas raízes. Não se isola dentro do ateliê para ele próprio não se sacralizar também. Sintomático é o nome dado a um cachorrinho, achado por ele, muito feio e doente: é o Reciclado, hoje um animal alegre e bem disposto.
   Como definiu Raimundo: é tudo uma questão de latitude. Pode-se perceber, que, em seu trabalho, não se restringe à produção de telas e objetos escultórios. Interage, continuamente, em sua vida, e através de sua criação, com seus semelhantes. Raimundo, o sensível diretor de arte dos seriados “A Pedra do Reino” e de “Capitu” e responsável pelo ateliê de arte de “Hoje é dia de Maria”, destaca-se com seu trabalho e ensina, com eloqüência, que foi possível harmonizar seu discurso com sua obra plástica, feita com os restos de uma sociedade consumista e, muitas vezes, perdulária. Há uma inequívoca coerência em sua atitude. Ele nos ensina que é possível evitar o desperdício e aproveitar o que é considerado imprestável para o uso, até mesmo para criar. Embora ele não tenha uma preocupação ecológica no que faz, é um ganho ambiental o que conseguimos com sua atuação. Percebe-se, sem sombra de dúvida, em seu caso, o significado social da obra de arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais se necessita. O artista, como educador, nos faz vislumbrar a atmosfera espiritual de que necessitamos.

Amélia Zaluar