No labirinto tropical, somos todos Teseu.

   Dentro do caos urbano, vias se multiplicam e se cruzam, formando um emaranhado de sons e caminhos que levam a lugar nenhum. Luzes artificiais cegam gradativamente e hipnotizam com a mesma velocidade com que estimulam cérebros viciados, ávidos por mais e mais estímulos. Imersos cotidianamente em uma ambiência entrópica, a espetacularização dos objetos leva a “coisificação” das relações humanas. Estamos em um labirinto. E não temos escolhas.
   A tautologia do dia-a-dia, as facilidades da vida moderna, a meta do desperdício nas políticas econômicas, as guerras inventadas, a banalização da vida, o lucro infinito. Esses são os tijolos das paredes do labirinto citadino.
   Mas, esta é apenas uma experiência labiríntica entre tantas. E existem tantas quanto existem pessoas no mundo.
   O artista plástico Raimundo Rodriguez, tece uma trama complexa e nos convida a trilhar um caminho incerto, crítico e vertiginoso. A construção do seu “Eterno Labirinto” é a materialização de suas próprias vivências, de um imaginário oculto, de um ciclo de vida e morte.
   Adentramos um espaço fantástico onde as paredes, saturadas com imagens, em toda a sua extensão, murmuram simultaneamente orações, segredos, desejos velados, confissões, poesias, medos, traições, canções de crianças, etc. Incontáveis são os pensamentos cristalizados nas paredes de três metros de altura, revestidas com madeira antiga e empoeirada, protegidas pelo verniz que lhes confere um tom rústico e sombrio.
   Ao contemplar as paredes imponentes que transmitem uma sensação claustrofóbica é possível ouvir as vozes, já sem tantos ruídos, e automaticamente entender que elas pertencem a homens, mulheres e crianças de toda parte, compartilhando seus regionalismos, traduzidas por sua fala e seus diversos sotaques.
   O percurso continua. A iluminação é Barroca e o sentimento também. Neste labirinto fantasmagórico somos transportados também para dentro de uma época pretérita. Há uma memória Colonial que reveste subjetivamente as paredes, dos pregos aos materiais descartados do dia-a-dia, e que nos separa da realidade do mundo exterior. Estamos dentro do Labirinto. Dentro de uma visão que a cada passo se multiplica e se torna universal, que a cada palavra e em alguma palavra se torna a nossa visão. Ao final de um corredor nos deparamos com o inevitável. O fim de todos os ciclos. A visão da morte nos choca. Após o choque a constatação: “é a morte alheia”. E alheios ao inevitável, ignoramos uma tradição, uma prática, uma crença nordestina, como tantas outras que fortificam as paredes robustas, materializada pelas fotografias. São documentos que não falam, nem murmuram como as paredes – eles gritam. E desse grito interior faz-se um silêncio. Mas, é preciso prosseguir, é preciso encontrar uma saída desse labirinto. É preciso escapar ao terror de confrontar aquilo que não queremos ver, nem pensar, nem sentir. Somos guiados por vozes e conduzidos instintivamente até outro ambiente. E então, o silêncio sepulcral se quebra e a passagem pela câmara mortuária chega a seu fim. Vemos outra cena menos densa e mais iluminada. Estamos em outra câmara, e subitamente voltamos a ser criança.

15/09/10
Renata Gesomino
Doutoranda pelo PPGAV-UFRJ na linha de pesquisa de história e crítica da arte.

Raimundo Rodriguez - Arte de Portas Abertas, 2010


Museu Casa de Benjamin Constant

Carrossel: olhos que fitam, mentes que giram.


   Há um movimento giratório concêntrico que de maneira vertiginosa nos captura para dentro de um universo já extinto. Aprisionados nessa camada intermediária entre devaneio e realidade, somos levados a caminhar por um chão batido onde a poeira fina se levanta rapidamente envelhecendo ainda mais os banquinhos de praça e o caramanchão verde ao fundo.
   Nesse cenário bucólico, onde árvores de várias espécies juntam-se ao hermetismo da casa branca do século XIX, encontramos a imagem materializada de uma estrutura deslocada do espaço e do tempo.
   É o que o artista plástico, Raimundo Rodriguez, nos oferta com a instalação “Carrossel”, onde oito cavalinhos de papelão se enfileiram concentricamente em busca de resquícios de infinitas infâncias perdidas, remontando parte de sua íntima memória afetiva.
   Elemento recorrente e de fortíssimo valor simbólico dentro das poéticas do artista, os cavalos, que estão instalados no quintal do Museu Casa de Benjamin Constant, por ocasião da mais recente edição do evento “Arte de Portas Abertas”, apresentam uma construção dentro da linguagem ímpar do artista, onde materiais recicláveis são dispostos de forma, ora a evocar imagens afetivas, ora a evocar aspectos da contemporaneidade que por meio de uma quase alquimia, converte material frágil em material nobre.
   Os oito cavalos de papelão, envelhecidos com verniz e betume, aparentam a solidez e o peso da madeira barroca, imagem na qual Raimundo Rodriguez tão fartamente se serve em seus trabalhos, conferindo um tom amarronzado com cores difusas e um odor de coisa antiga.
   A partir do eixo de ferro que se fixa ao chão, vemos inteiramente a estrutura simples atingir cerca de 4m de diâmetro por 2,5m de altura, de onde as hastes, feitas de madeira reaproveitável, ligam-se aos cavalos formando o carrossel.
   Nos olhos dos oito cavalos vemos um reflexo negro-azulado próprio das bolas-de-gude, um outro elemento que remete a brincadeiras infantis quase que inexistentes nos dias de hoje, ao mesmo tempo em que, nas celas dos cavalos, materiais como os discos compactos – cd´s são incorporados nos trazendo momentaneamente de volta ao espaço-tempo real, num ir e vir constante, moroso.
   Contemplar a instalação “Carrossel” é ludicamente olhar de soslaio para o passado, reaprendendo a lição tautológica da vida, e ao final de uma volta de 360 graus, retornar suavemente para o presente. Parado ou em movimento é essa imagem atemporal que o artista plástico Raimundo Rodriguez nos presenteia, recompondo os delicados fragmentos de inúmeras e anônimas infâncias perdidas revitalizando, por conseguinte, vivências atuais.


03/09/10
Renata Gesomino
Doutoranda na linha de Pesquisa de História e Crítica da Arte pelo PPGAV-UFRJ.

Raimundo Rodriguez

Montagens . pinturas . objetos

   Os corredores estreitos quase labirintos, as pequenas câmaras com luz difusa, as avalanches de informações que caem sobre o expectador nesta montagem da exposição de Raimundo na Galeria do Sesc/Meriti. É um mergulho profundo no sítio arqueológico que cada ser humano traz em seu interior. O místico, o religioso, os arquétipos, tudo que possa estar enterrado como fóssil começa a desvelar-se a luz dos olhos que permitem os questionamentos.

Gino Fonseca
Curador da exposição

Raimundo Rodriguez , um artista educador



   Um artista talentoso que se interessa pelo rejeito, pelo material desprezado, pelas sobras: este é o princípio básico de seu trabalho. Seu desafio é sempre transformar algo que ninguém quer em objeto de desejo. Sua filosofia é tornar a dar vida ao que já está morto, é ressuscitá-lo, é proporcionar-lhe uma nova vida. No material totalmente desprezado é que ele percebe força e beleza. Para Raimundo, o objeto que porventura escolhe para levar a cabo sua missão, não muda, o que muda é a energia do mesmo. “Quando pego uma bacia velha, a bacia continua a mesma, mas ela vai se transformar num objeto que vai ser desejado. Me interessam muito os objetos de força bruta para sacralizá-los: um carrinho de mão, uma ferramenta, um manequim de moda que transformo em anjo. Quero, como disse Walmir Ayala, harmonizar objetos conflitantes.”
   O surrealista francês Marcel Duchamp colocou, em 1914, um objeto escolhido ao acaso sobre um pedestal, o qual ficou assim investido da dignidade solitária do destroço abandonado. Servindo a nada, disponível, pronto para tudo, vive. Essa exaltação mágica do objeto é a confirmação de que a arte moderna, conhecida como tal desde o início do século XX, se remete à tradição dos alquimistas que, durante a Idade Média, consideravam a matéria como a essência da terra, digna de contemplação religiosa A arte moderna e sua significação simbólica,ocupam por conseguinte, um lugar na história do espírito humano.
   O espírito da matéria, isto é, o espírito que se encontra dentro e por trás dos objetos inanimados, pode ser percebido por termos, dentro de nós, o mesmo mistério. Contactamo-nos com esses materiais, diretamente, através do que Jung chamou de inconsciente coletivo. Esta definição, como a conhecemos hoje e aquilo que em termos da física chamamos de matéria, era para os alquimistas a mesma coisa “desconhecida” , só que num dos casos observada de fora , e, no outro, de dentro. ”André Breton, o poeta francês, um dos mais importantes idealizadores do Surrealismo, no início do século XX, buscou a reconciliação dos contrários, o consciente e o inconsciente. Miró, Picasso, Braque, com suas colagens, feitas com todo o tipo de lixo e entulhos, e Paul Klee, traduziam o espírito dessa época em suas obras e compartilhavam a sensação de que o objeto significa “mais do que o olho pode perceber.” Cada artista, desde os mais remotos tempos, foi sempre o instrumento e o intérprete de sua época e, para esses artistas de vanguarda, que viviam a tragédia da I Guerra Mundial e suas conseqüências dramáticas e funestas para as populações atingidas, foi preciso romper, quebrar com os cânones da arte até então vigentes.
   Raimundo, perfeito continuador dessa maneira peculiar de viver a arte, não compra o material, usa o que vai encontrando largado, abandonado pelas ruas, pelos montes de lixo: sua “matéria-prima “ é o rejeito. Dentro do lixo só o interessa o que não interessa a mais ninguém. Não interfere logo na peça, deixa que ela se apresente. Não quer , porém, mostrar-se panfletário no aproveitamento desse material. Tem uma firme posição filosófica sobre o assunto: não se envolve em disputas com ninguém na obtenção do material, não usa da violência da disputa. Para ele, objetos, ressentimentos e pessoas rejeitadas não interessam, só se conseguir transformá-las. E diz que o que transforma é a arte, é sentimento. Se não mudar o coração, se não abrir o coração, se não der alegria, se não provocar um questionamento, não muda nada. Argumenta, com sabedoria, que com o acúmulo de informações, com os milhares de livros,de filmes, de revistas, de programas de televisão, nos tornamos mais superficiais pois não há tempo para aprofundamentos. Mas para o artista, lembra Kandinsky, a importância das grandes obras de arte não repousa na superfície mas na raiz das raízes: no conteúdo místico da arte. E ele afirma que o olho do artista deve estar sempre voltado para sua vida íntima e seu ouvido, sempre alerta à voz da necessidade interior. Paul Klee, por sua vez, diz que é preciso tornar visível tudo o que se percebe secretamente. A lamentar, filosofa Raimundo, o fato de que a maioria das pessoas só vê a superfície, quando o certo é ver com o coração. Ver dentro das coisas, com/ viver. Aprender essa atitude leva tempo, não é um dom, não é magia, é estudo, um treinamento, um hábito.
   Nascido no Ceará em 1963, filho de pai estucador e neto de carpinteiro, começou a pintar aos treze anos. Participou de ateliê no Rio, a Colméia dos Pintores do Brasil e participou, aos quinze anos do 1º Salão do Artista Jovem, no Planetário, no Rio. Durante alguns anos foi animador cultural da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro. Tem presença constante e de grande relevância no movimento cultural do município de Nova Iguaçu, onde mora. É fundador e participante ativo do Grupo Imaginário Periférico. Em sua comunidade pinta muros, participa das festas, recebe, com prazer, as doações dos conhecidos daquilo que não os interessa mais. Sai às ruas e vai cumprimentando e conversando com intimidade com os que encontra. Convive com a pobreza dos vizinhos e percebe que, apesar das muitas necessidades são pessoas criativas. Vê como muito importante conviver com sua comunidade, pois aí estão suas raízes. Não se isola dentro do ateliê para ele próprio não se sacralizar também. Sintomático é o nome dado a um cachorrinho, achado por ele, muito feio e doente: é o Reciclado, hoje um animal alegre e bem disposto.
   Como definiu Raimundo: é tudo uma questão de latitude. Pode-se perceber, que, em seu trabalho, não se restringe à produção de telas e objetos escultórios. Interage, continuamente, em sua vida, e através de sua criação, com seus semelhantes. Raimundo, o sensível diretor de arte dos seriados “A Pedra do Reino” e de “Capitu” e responsável pelo ateliê de arte de “Hoje é dia de Maria”, destaca-se com seu trabalho e ensina, com eloqüência, que foi possível harmonizar seu discurso com sua obra plástica, feita com os restos de uma sociedade consumista e, muitas vezes, perdulária. Há uma inequívoca coerência em sua atitude. Ele nos ensina que é possível evitar o desperdício e aproveitar o que é considerado imprestável para o uso, até mesmo para criar. Embora ele não tenha uma preocupação ecológica no que faz, é um ganho ambiental o que conseguimos com sua atuação. Percebe-se, sem sombra de dúvida, em seu caso, o significado social da obra de arte: ela trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aquelas formas das quais se necessita. O artista, como educador, nos faz vislumbrar a atmosfera espiritual de que necessitamos.

Amélia Zaluar